sexta-feira, 27 de março de 2009

Adamastor, um ensaio mutante descompromissado - 1º capítulo


Por Marco Antonio Martins

Capítulo 1
O velho caixote de madeira jazia ao lado do corpo do verdureiro aposentado Adamastor Sentinela, o ex-vizinho de Mariana, estudante de Direito e filha da mãe-solteira Dora, a melhor costureira da região e quituteira de primeira. Apenas alguns trapos amarrotados e repletos de furos cobriam o ancião, cheirando a urina, jogado na sarjeta pelo próprio filho, Arnaldo, um bancário desempregado de 45 anos, amigado com a vendedora Raquel, pai de três lindas meninas, fiel consumidor de cocaína e dono de uma gigantesca dívida de jogo a atormentá-lo.

Adamastor perdera a mulher Joana há pouco menos de seis meses vítima de câncer no cérebro e, desde então, desligou-se totalmente da vontade de respirar. Era ela, a gordinha Joana, quem sempre cuidou dele, desde o começo do namoro aos 20 anos. Adamastor se habituou a viver em função do primeiro e único amor de sua vida. Depois de Joana dar entrada no Cemitério da Saudade, Adamastor largou a casa de 12 cômodos, construída com sacrifício na Rua José Paulino graças ao trabalho no Mercado Municipal e às parcas economias herdadas do avô materno, e recolheu-se a um terreninho de chão batido, esquecido pela Prefeitura entre duas construções no Centro de Campinas.

Enfermo e indiferente, sequer se importava com a presença de ratos do tamanho de gatos em seu novo lar. Dormia ao relento. Se chovesse, instintivamente se enrolava num velho cobertor doado por dona Ernesta, uma evangélica baixinha e de muito bom coração, mas totalmente cega pela adoração incondicional ao pastor Serafim, e buscava abrigo sob uma ponta de telhado que pendia do prédio ao lado. Ao menos não se molhava tanto. Vivia como podia e não reclamava. Na verdade, raramente ouviam-se palavras da boca do pobre coitado.

Adamastor não tinha mais a companheira de 48 anos de convivência, nem o amor do único rebento, vencido pelo pó ainda no começo da adolescência. O verdureiro rendeu-se ao álcool por completo desespero, como num último ato em busca de uma morte mais rápida, penosa, mas consideravelmente menos dolorosa que a própria realidade. O solitário homem não tinha coragem para se matar de uma vez. O que lhe sobrou de respeito a Deus não lhe permitia tal atrocidade. Até que pensou em se jogar da passarela sobre a Avenida Aquidabã, mas não conseguiu. Faltou-lhe coragem e chorou, chorou copiosamente, como um recém-nascido abandonado sobre uma tampa de bueiro.

Dinheiro não lhe restava nenhum. Arnaldo lhe tomava até o último centavo da minguada aposentadoria, mensalmente, religiosamente, ainda na boca do caixa do banco. O homem vivia de esmolas, mendigadas nos semáforos do Cambuí, dinheiro suficiente para pagar somente algumas garrafas de caninha, um pouco de pão e, às vezes, um marmitex entupido de arroz. Não que ele pedisse grana, mas os poucos amigos do passado ainda vivos torciam intimamente para que o homem renascesse, se alimenta-se ao menos minimamente e desse um fim ao martírio provocado pelo filho.

Ninguém entendia como aquele senhor de 68 anos conseguia sobreviver sem comer decentemente, sem carinho e com uma tosse irritantemente constante. Um grupo de católicos, filhos de Maria, bem que tentou resgatar Adamastor de seu inferno particular, mas nada surtiu efeito. A polícia e a assistência social foram chamados inúmeras vezes e nunca apareceram. Adamastor esperava a morte e não queria ser atrapalhado.

A pinga, o velho cobertor, o caixote com algumas lembranças do passado, os poucos cabelos brancos na cabeça e as ratazanas lhe eram suficientes para acompanhá-lo na jornada final. O caixote de alface, por si só uma recordação dos longos anos de labuta, guardava algumas fotos do casamento com Joana e de Arnaldo criança, dois ou três pares de meias, uma camisa do Palestra, um relógio de bolso quebrado, presente da esposa falecida, e várias baratas estrategicamente aninhadas no fundo esburacado. Arnaldo pensou em fazer um troco com o relógio, mas Adamastor conseguiu impedir, apesar do olho roxo e de duas costelas quebradas. Ele também apanhava do filho e não reclamava.

Arnaldo o culpava irracionalmente pela morte da mãe, como se o verdureiro fosse algum milagreiro, capaz de arrancar um câncer do corpo de alguém num simples menear de mãos. Assim era a vida de Adamastor Sentinela, um nordestino de Recife, que adotara o Estado de São Paulo desde os 19 anos.


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